edição 45 | dezembro de
2013 3 poemas mafalda mautner batons
usados
Os vícios que
alimenta
não se
curvam à tesão:
sendo
preciso, caminha no dilúvio
pra traficar
prazeres.
Um sorriso
debruçado no parapeito,
colhe uma
réstia de sol,
chama com que
acende luminárias
em cada canto
do apartamento.
Os homens que
vêm não ficam,
nem nos
sofás, nem na memória.
Tem muito
medo de estar doente,
paga em dia
aluguel e instituto,
compra um
batom por mês e envelhece.
necessidades
Um banho que
remova
o sujo das
mentiras
de um dia
inteiro verborrágico,
depressa um
café
que desperte
a razão
anestesiada
em manicômios
sem
paredes,
agora,
já
na tevê um
programa
sobre
culinária
que distraia
da inércia,
bem rápido um
vestíbulo
circundado de
portas
que sirva de
caminho
apenas
para
ir.
sombra e
devoção
Quem é o
demônio
cujo olho
ciclópico a fita
quando, com
mão sub-reptícia, envenena
o próprio
prato de comida?
O que ele
pressagia
nesse fim de
manhã
quando o ópio
da névoa a embriaga
em sua queima
de deuses e almanaques?
Apenas um
olho basta
para
condená-la ao inferno
ou abrir a
seus passos as mansões do céu:
ela, que foi
boa com os vizinhos,
ela, que teve
pena dos enforcados,
ela, que
cortava os dedos úmidos
depois dos
atos sexuais.
Tanto tão
perto dele, descobre:
o demônio é a
sombra do seu corpo
contra a vela
posta ontem
para a sagrada imagem.
©thereza
portes
a terceira via marilena soares Não esperava.
Dor infinita. Urro de lobo preso em armadilha. Sem chance de defesa. Mal
súbito. Mistura explosiva: raiva, humilhação, revolta, ciúmes. Tudo. Choro
convulso. Lia, relia e repudiava. Primeira namorada, única amante. Ele, o
dela também. Casamento há mais de dez anos. Há dois, em crise. Frigidez.
Impotência. Juro que eu não queria. Mesmo não existindo mais casamento, eu
não queria. Sei que pra ti não importa, mas para mim é fundamental dizer.
Lutei com todas as forças e fui incapaz de resistir. A paixão foi maior.
Não tenho direito a perdão. Não peço nem quero. Para teu próprio bem,
evita saber quem é. Te cuida. Ele desconfiava. Fingia não perceber, como
um médico que suspeita ter uma doença fatal e não há ânimo para procurar
ajuda, como se assim evitasse a confirmação. Esperançava um engano... um
erro; um susto... Isso, um susto. Iludia-se. Não podia ser verdade...
Brincadeira de mau gosto, ou gosto de maldade sem brincadeira. Acúmulo de
ressentimentos. Impossível ter acontecido. Telefonou para os lugares aonde
ela costumava ir. Depois lavou o rosto com água gelada. Desesperado, saiu
de casa direto para o apartamento do comborço. Acessível à entrada
principal. Entrou. Escutou sons abafados: gemidos prolongados de alguém
rouco que parecia sofrer. Dirigiu-se para o quarto de onde vinham os
ruídos, e colou o ouvido à porta. Identificou a voz da esposa: continua, filho da puta me faz gritar
aaaaaahhhhh me fode com força me fode toda mete esse cacete enorme bem
forte não para; fode a tua cadela me arromba
inteira...
Engoliu em
seco. Com ele nunca ela tivera gozo tão furioso. Sempre achara que fingia,
tamanha a sobriedade dos orgasmos. Em verdade, jamais supôs que qualquer
mulher pudesse gozar com tanta intensidade. Muito menos a sua mulher.
Agora parecia louca — pelo calão das palavras. Ou engasgada — pela
estranheza dos sons. Ou as duas coisas juntas. Não via, mas adivinhava.
Seu corpo retesado, em arco com o eixo da coluna; estremecimentos
desesperados dos quadris na ânsia de deglutir o pênis rígido do outro,
feito um asmático em crise buscando o ar. Fera ferida, impotente para o
ataque. A verdadeira impotência. Odiava-se por ter de reconhecer que se
excitara como há tempos não acontecia. Não sentia propriamente ciúmes. Ou
ao menos não só. Tratava-se de uma mistura bizarra de emoções como ele
jamais havia experimentado antes: iam do auge do ódio ao extremo do
desejo. Sofrimento lancinante enroscando-se ao prazer. Euforia de
martírio. Quando a aflição atingiu o limiar de tolerância, atirou o fiapo
de razão no caldeirão de comoções. Só enxergava duas saídas: suicídio ou
duplo homicídio. Escolheu este de pronto.
Cego,
desarmado, e sem ter como entrar, saiu como um louco. Enquanto dirigia de
volta, a ira foi-se aos poucos arrefecendo, e dando lugar a um sentimento
ainda mais perturbador e estranho. Tudo o quanto importava agora era
possuí-la nas mesmas circunstâncias, e com mais violência do que
testemunhara. Afinal, era a sua mulher. Tinha direitos. Não abriria mão de
usufruir aquela coisa sem nome, que tanto o maltratara. Mas também tanto o
excitara. Não. Não mataria. Nem se mataria. Impossível privar-se da vida
ou da liberdade por causa de um capricho. Renunciar à satisfação daquele
impulso doentio, mas agridoce, em troca de uma vingança. Precisava dominar
os instintos. Ou antes, agir com a razão em seu
nome.
Precisava de
tempo para pensar... Planejar. Em casa, exaurido, atirou-se ao sofá. Na
parede, o semblante sereno da esposa num retrato embaçado pelas lágrimas e
pelo tempo, sorria saudades circulares. De repente ela entrou porta
adentro e disse secamente: Decidi voltar pro meu quarto. Depois entrou e
se trancou a chave. Doeu mais do que a dor. Mas o alívio foi maior. De uma
velha televisão em preto e branco, um filme de Billy Wilder a tudo
assistia...
1 microconto, 1 poema mariza lourenço
*
um dia ela voltou. para espanto de todos, alegria de uns e tristeza de outros. resolveu que faria tudo diferente. errou tudo de novo. a vida é bela e disforme. no alto, bem lá, pendurada no céu, uma lua perfeita anuncia: é tudo mentira.
centauro "(...) Deixa que a minha mão errante adentre
o trote ao largo à frente atrás ao lado
[assim, bem quieta]
o trote lento dentro
[ainda, não] pulsa pula o músculo treme aberta a carne relincha a fera no ouvido [abre]
2 poemas, 1 microconto melissa campos oralidade
Mastiga um
cigarro
e a garganta
aberta,
em
seresta,
bafeja a
fumaça.
A mesma
boca
que engole a
cachaça,
digere a
calça baixa.
Não
recusa.
Não
recua.
Se
farta.
Fundo.
divórcio
Não sambou na
quinta-feira
nem dormiu as
dores na sarjeta.
Não cantou as
noites mortas
nem brincou
na água turva.
Não buscou a
dona lua
não gritou a
pele crua.
Engasgou a
morte
rejeitou a
corte.
Fechou o
peito no silêncio,
cegou os
olhos,
lacrados em
diamante.
Fugiu dos
monstros,
estampa no
semblante,
a ficção
imposta
pela dureza
do instante.
Não foi
Alice,
não foi
Suzana.
Não foi
Morgana.
Helena
rejeitada,
da Tróia
desarmada.
Não
calou,
nem
contou.
Seguiu o se
não fosse
como
verdade
como
verdade
segurou a
tosse
e não foi
abandonada.
A imaginação
não deixou.
ritual
Fechou as
janelas até o dia de Reis. Por não suportar o Natal, por ter medo dos
pisca-piscas, por trancar o Solstício, não quis participar. Fez seu
próprio rito, o de negar. Religiosamente, trancava-se e não saía. Todos os
anos dividia, sem se dar conta, do mesmo tempo religioso. Assim não estava
só, enquanto os outros celebravam.
©thereza
portes
3 poemas nanda prietto máscaras
bizarras
Preocupada
com a saúde anal
Do estuprador
chegando ao presídio,
Não dormirei
nunca mais na vida.
Preocupada
com a maquiagem
Das black
blocs fêmeas
Dando
entrevista à Rede Globo,
Não
conseguirei me concentrar na Nickelodeon.
Escondo o
rosto e mostro o dedo.
Tecer lençóis
para cobrir o desfiladeiro.
Repertório de
trevas
Para
disseminar a fome
E declarar a
guerra.
Não! Não
tenho culpa
Se execro as
cloacas
Travestidas
de vulvas.
melancia
Teus seios.
Pegajosos. Úmidos.
Minha boca,
nossas bocas,
Escorrendo.
Biquínis.
Umbigos.
Tatuagens. Piercings. Vulvas.
Comemos o
verão todo
Besuntando de
água a sede
Uma da
outra.
Febre úmida.
Satélite. Abelha.
O açúcar de
teus segredos.
Língua.
Gilete. Vulva. Ânus.
Stacy Martin.
Lisbeth Salander.
Strapon não
me expurga.
(Prefiro
dedos. Boca. Seios. Ânus. Vulva.)
Nós. Duas
amantes púberes de Klimt.
Duas de Les
Demoiselles d'Avignon.
Santas
Teresas cantando baise-moi.
Ombros
desnudos propondo travessias.
Risinhos de
êxtases vespertinos.
E quem
olhasse veria apenas
Duas crianças
comendo melancia.
lilith
Não importa
se a fé é cega.
Toda nudez é
em braile.
Se Deus
existe, Ele
Habita no
orgasmo.
Minha
masturbação diária é
Fantasiar
salvar das cruzes
Desnudos
mártires.
Fugi do
catecismo para
Converter o
vinho em água,
Fazer
afrodisíaco dos óvulos
Das santas
convertidas em diabas.
Ovelha em
pasto puríssimo,
Eu falo do
céu
Só do ponto
de vista do abismo.
Desfaço a
infibulação de Lilith.
Tenho um
coração de mendiga
Comido pela
lepra.
Deus?
Oramos,
rogamos, só se temos algum câncer.
Gozamos, se
temos febre.
No mais das
vezes,
O dia inteiro
provocando o inferno.
1 poema em linha reta, 1 microconto
nina rizzi absoluto,
2
Nada sei do
absoluto. Quase.
Um ponto
entre a mobilidade e o silêncio em toda carne, nem só carne. Sei que o
absoluto é um deus que me escuta e enxerga. O passado me repele em saltos
ao desconhecido.
Sei também
das noites em que repousava lentamente, e apertava com força descomunal,
uma mão na outra. Movimento encarnado, encontro do que não poderia ter
sido e foi. A existência reconciliada. Perpétua possibilidade. Estender-se,
ser-se.
Invita-me palavras desusadas —
amiúde, derna muito — como um lugar criado na linguagem, um lugar
metafísico em que possa caminhar sem que seja estrangeira, como tudo.
Exatamente livre. Ecos epifânicos, partícipe de sua Bondade e o indelével,
o inefável.
Sinto. O
silêncio que flui sobre nós, como o mormaço sobre o oásis, o orvalho sobre
a terra. Como coisa profética, como toda calma para o transe, saliva sobre
a dor.
Sei que o
busco, em vigília, com tudo — imersa de agoras e o tempo-quando. Sei que o
absoluto é um caminho, e que sou a sua morada.
micro
colossal,
começou pelo pé 42. enorrrme. e a cada peça tirada mais imensa me vinha. e
eu precisava ver a buceta dela pra ter certeza que era mesmo uma mulher.
nua. completamente nua vi a fêmea em cada pelo. era mulher em cada poro e
até no pé de número 42, sobtudo. mais mulher que qualquer outra e mais até
que a que me engana, se mente, chamada minha. é muita mulher. até pra mim
que não posso, não posso porque só poderia matá-la com um
beijo.
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