edição 48 | outubro de 2014
temas:  uma andorinha só | amuleto | old times

 

 

priscila merizzio | frutífero coração | curitiba | 2012

 

a coisa
lia beltrão 


Em algum lugar uma coisa se esconde esperando minha mão. Um dia, o acaso me levará para um canto sombrio da casa, onde uma caixa de sapato ou a gaveta de uma antiga cômoda guarda a coisa que me espera. Vago pelas sombras da casa e minha pela eriçada me avisa da proximidade da coisa. Então me afasto até que a pele sossegue e me permita caminhar sem sobressaltos. Mas o caminho oposto também me leva a sombras e novamente sinto o arrepio. A coisa é móvel. Pisca para mim de sombra em sombra. Não sei o que quer de mim nem o que tem para me dar. Sei que me atrai e me repulsa. E é grande o medo que tenho de encontrá-la.

 

 

6 poemas
líria porto 


extermínio

 

 

um canto sem corpo

a alma de um pássaro

um ninho vazio a chocar

só as cascas

 

 

 

 

antídotos

 

 

cisco no olho pedra no sapato inveja mau olhado

qualquer outro incômodo

:

arruda na orelha figa no pescoço

banho de sal grosso

até reza braba

 

 

 

 

crisálida

 

 

mãe de quatro larvas

tecia sua trova

tinha lindas rimas

cuidava da prole

 

veio a poesia

deu-lhe nova ordem

:

toma um par de asas

faz teu voo solo

 

ela obedeceu

tornou-se aplicada

todo dia escreve

sobre tudo e nada

 

 

 

 

infortúnio

 

 

pé de coelho

trevo-de-quatro-folhas

guiné arruda alecrim

comigo-ninguém-pode

ferradura atrás da porta

banho de sal grosso

espada-de-são-jorge

e nada de sorte

 

 

 

 

reencontro

 

 

o tempo a distância

e de repente o retorno

tua voz ao telefone

as notícias as mudanças

os filhos que se casaram

netos e netas crescidos

as recordações

e meia hora depois

o espaço de tantos anos

reduz-se a semanas

 

(retomamos a conversa

no ponto da despedida)

 

 

 

 

dis_sabor

 

 

o doce de fruta na tacha de cobre

o açúcar era pouco o esforço era enorme

o fogo queimava por dentro

e por fora

 

desculpa seu moço — assim tão amarga

tão triste e pequena co'a vida de pobre

tudo o que faço tem gosto de fome

e passado

 

priscila merizzio | estética das ruas de paris. só faltaram os louquinhos que dormem nos metrôs |
colombo | curitiba | 2012

 

3 poemas
mafalda mautner 


forja

 

 

Incompreensível como um só verão não faz

andorinhas ao vento e ao sol. Espantoso como

uma andorinha só produz a carne do verão

na oficina do voo mergulhada no silêncio.

Pode ser que o verão fraqueje no tempo

ou talvez seja a andorinha um Hércules com asas

atômica como uma bomba hiroshimando o solo

e ele — o verão — um deus velho e com fome.

 

 

 

 

das cáries da fortuna

 

 

A sorte sorri (ela tem dentes podres) independente do amuleto.

A sorte tem seus dias de febre e de ira, suas antipatias

e não sorri pra todos : os anjos caídos têm prioridade

já os mercadores de ferrugem desconhecem o sorriso

(os dentes se gastaram nos séculos) na cara de Fortuna.

Por isso que tentam abrir sua boca com fórceps

de amuletos vários — alguns com cores, lumes

outros de madeira antiga ou pedra. Amuletos

são delírios, foram feitos da mesma matéria

inócua das utopias. Não resistem muito tempo

a estes lábios com batom vermelho que nunca se abrem.

Soubessem da podridão de dentro (das cáries), saltariam

no abismo ou no oceano os que têm consigo

patuás como máscaras que se rasgam no fim do baile.

 

 

 

 

história comum

 

 

Não trouxe dos velhos tempos o guarda-chuva esgarçado

sempre na pasta de papéis. Seu olhar clínico

sobre os desníveis da cidade. A fotografia de Greta Garbo

com a elegância em desuso do chapéu. Não trouxe sua ironia

diante da expressão old times que um colega de repartição

usava referindo-se a uma juventude sem ópio

ou qualquer outra transgressão. Deixou junto a tudo isso

as notas baixas nas provas, o subúrbio de onde veio

a beatice da mãe e tias, o tônico amargo uma vez por mês

e numa esquina, ele mesmo — apagado

como uma carta esquecida na chuva

(era o verão de 1928)

antes de ser lida.

 

 

 

 

conselho e torrada só se dá a quem pede
mariza lourenço 


[1950]

— Quanta má vontade — queixou-se à colega de repartição após ser ignorada pelo vendedor de eletrodomésticos.

— Se estivesse acompanhada por um homem, teria sido atendida na hora. Nunca vou às compras sem o Mário.

— Que isso, Lucinha, está sugerindo que eu me case para ser bem atendida em lojas?

— Não, estou aconselhando que se case para ser feliz. Mas é claro que ser bem atendida em qualquer lugar é um dos inúmeros benefícios do casamento.

 

[2012]

— Dona Vera, está quase na hora.

— Eu sei, me ajude com o fecho do colar.

— A senhora não terminou de contar...

— Ah! É verdade. Retornei à loja depois do expediente, conversei com o tal vendedor. Deu certo, ganhei 10% de desconto e, de quebra, um brinde muito bacana. Pronto, acabou a história.

— Mas... só isso?

— Só isso o que, criatura?

— E o conselho de dona Lucinha?

— Lucinha era péssima conselheira, óbvio que entrou por um ouvido e escapuliu pelo outro. E eu aprendi, ainda moça como você, que é mais prático comprar uma bengala. Por favor, menina, não fique com essa cara triste, eu fui feliz.

— Por falar em bengala, quer levá-la?

— Claro, pegue aquela com apoio de prata. Velórios são cansativos e esse, em especial, será longo. Lucinha era muito querida.

 

 

 

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